domingo, 22 de novembro de 2020

Sobre sonhos, comunidade e luta: o VIII Novembro Negro da Comunidade Quilombola da Lagoa Grande

 

 

Aconteceu entre quinta e sábado o VIII Novembro Negro da Comunidade Quilombola de Lagoa Grande. Lindo e potente como todos os outros, mas singular este ano, de vários jeitos. Em meio à pandemia, a Comunidade o reinventou, traduziu nas telas os abraços, cheiros, gostos, música e movimentos que o fazem ser tão especial. A imposição do novo fez xs mais jovens chegarem mais perto. Do afeto que circulou nas redes saiu a energia que fez do encerramento do evento um momento de simbolismo especial: na alvorada do sábado, gente unida às margens da lagoa, fincando placas que simbolizam a autodemarcação de seu território e firmando compromissos da continuidade das lutas.

A fala forte e emocionada de Renilda Cruz (ou Nina como é por todxs conhecida), presidenta da Associação Quilombola Comunitária de Maria Quitéria (AQCOMAQ) é uma bela síntese do que aconteceu nestes dias e pode ser lida na íntegra aqui (https://teiadospovos.org/o-novembro-negro-e-a-demarcacao-do-quilombo-da-lagoa-grande/).

As palavras de Nina amplificaram a emoção de todxs que tiveram o privilégio de viver estes dias. E atiçam sonhos, inspiram, enfeitiçam para a luta. Chamam, em especial,  a juventude quilombola da Lagoa Grande, que atualiza os sonhos dos primeiros Guardiões e Guardiãs da Lagoa.

É de sonhos, afinal, que fala TAMILLE DOS SANTOS FERREIRA, quilombola da Lagoa Grande, estudante de Psicologia da UEFS. No texto abaixo a transcrição da sua bonita e forte mensagem, transmitida em áudio, na manhã do dia 22 de novembro, ao grupo envolvido na organização do evento.

 

Bom dia pra vocês. Parei agora de manhã para ouvir porque ontem não tive tempo e precisava ouvir com a tranquilidade que o momento exige.  Foi um ato muito importante, foi uma realização de sonho, na verdade. Foi um momento de glória da nossa comunidade.

Eu acho que somos comunidade sim, somos pessoas, somos um povo de luta. Um povo que reconhece seu lugar, seu direito, seus deveres. Mas também somos um povo que precisamos reconhecer a importância da contribuição de outras pessoas que vêm pra somar com a gente, que não pertencem à comunidade – mas de uma certa forma pertencem, porque ajudaram a construir esse momento. Então, eu quero parabenizar, me sinto no dever de parabenizar a todos vocês que, mesmo não sendo comunidade, tão somando na nossa causa.

Parabenizar a nossa comunidade, parabenizar a contribuição de cada um. Porque pra formar esse corpo, pra chegar onde a gente chegou, pra ter o alcance que a gente chegou só foi possível através dessa unidade, dessa união, desse somatório de forças entre pessoas diferentes, entre pessoas distintas, mas que sempre lutam por um bem comum, por uma causa comum. Então, o que eu quero realmente é agradecer.

E, ontem, eu tava falando com algumas as pessoas, o momento foi regozijador, o momento foi de esplendor. Momento que me trouxe, me reportou a um momento da minha vida que eu sei que eu vivi, que não foi nessa vida, mas eu sei, eu sinto que eu vivi, eu senti que eu vivi. Eu pude experimentar um pouco ainda do que a lagoa ofertava aqui pra comunidade da gente. Pouco, bem pouco mesmo, porque quando eu ouço as histórias dos meus avós, dos vizinhos, quando eu ouço a história aqui do pessoal, [eu sei que] a lagoa era muito mais rica, ela ofertava muito mais coisas. Eu peguei a pontinha do nada, do bem pouquinho do quase nada, mas essa pontinha que eu peguei movimentava um sentimento dentro de mim de insatisfação tão grande, que eu conversava com um, conversava com outro, na busca: “gente, bora fazer alguma coisa, a gente consegue fazer alguma coisa pela Lagoa”.

Colocava nas reuniões da Associação essa vontade, nas rodas de conversa. Passava pra Tio Nico [José Carlos Santos de Almeida], enquanto Presidente [da AQCOMAQ] ainda, essa necessidade, essa vontade. E a gente colocava os pontos, a gente colocava quem ia ter coragem de abraçar, quem não ia. A gente discutia em relação a isso. Aí a gente conversava, a gente concordava, a gente discordava, mas eu dizia: “não gente, é possível, se a gente se unir a gente consegue mobilizar o povo”. Porque quando você vê uma causa, e você vê que tem sentido naquela causa, as pessoas vão se somando, vão se somando, vão se somando e toma uma proporção grande que a gente vai à frente e a gente consegue o que a gente quer.

Então ontem o que eu senti foi isso aí. Ontem o que eu senti foi a materialização de um sonho. Porque tudo aquilo que aconteceu eu tava vendo se materializar. Tudo que eu pretendi, tudo que eu sonhei. Tudo que eu conversava com outros políticos que são fora do grupo, tudo que eu colocava nas minhas reuniões, ou no DA [Diretório Acadêmico] de Psicologia, o que eu levava pros meus grupos de convivência, era essa necessidade. E ontem eu vi materializar aquilo.

E quando Caciano fala [Mestre José Caciano Pereira da Silva], eu não consigo tirar, desvincular meus olhos dos olhos de Caciano. E você vê passar um filme, uma história toda a sua frente. História que eu não vivi, que eu não vivi fisicamente, mas que eu sei que em algum momento da minha vida eu estive numa situação assim.  

Então só gratidão, gratidão, uma imensa gratidão, é o que eu tenho pra dizer. Me colocar, me implicar aqui nessa luta, porque que essa luta é uma luta coletiva. Não tem como fazer diferença, diferenciação, porque a gente só vai conseguir se a gente se manter unido, se a gente se manter firme e forte. Porque não adianta a gente fazer esse ato, a gente ir, fazer essa autodemarcação, e a gente não entender que isso aqui agora é um processo contínuo, é um processo de luta contínua. De a gente não entender que vai alcançar outras pessoas, outros órgãos, pessoas de instituições – que podem querer se juntar a nós, mas também que podem querer nos confrontar, que podem querer desvalorizar, que podem querer descredibilizar nossa luta. É saber que isso aqui é contínuo. E, tô aqui, pro que precisar, por que der e vier.

Eu tenho um sonho, eu sonho, eu conto esse sonho pra algumas pessoas, tem gente que me chama de tola. Mas eu tenho um sonho recorrente com essa Lagoa. Eu sentada às margens da Lagoa, contemplando o pôr do sol e as pessoas, assim, [risos], passeando de jet ski, pessoas de boia deitadas dentro da Lagoa... E esse sonho é recorrente.

Então eu acho que ontem o meu choro foi justificado porque eu consegui, como se eu tivesse dando um grito: “aquilo ali, meu Deus do Céu, tá se materializando, tá acontecendo, tá aqui, tá tá vivendo, tá tornando realidade!

Então eu agradeço a contribuição de todo mundo, indistintamente. E parabéns pra gente, porque a gente conseguiu, a gente chegou lá.




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